segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Memórias


Tocar no céu
            Lembro-me de que quando era pequeno tocava no céu todos os domingos.
 Era tão fácil.
            Na verdade, não era assim tão pequeno, já percebia que os bebés não vinham das cegonhas e que o mundo era redondo e não caíamos devido à força da gravidade, algo que eu gostava de mostrar que sabia. Ainda que, constantemente, perguntasse à minha mãe: "Mãe, se as pessoas vão para o céu, qual será o tamanho da escada?".
            Todos os domingos, eu e a minha mãe costumávamos ir até à Figueira de comboio. Era um acontecimento, andar de comboio. Não resistia a fazer grandes maratonas pela carruagem fora. Todos os passageiros eram para mim alvo de uma boa conversa. Às vezes fingia ser o revisor, brincadeira à qual os passageiros colaboravam entregando-me o bilhete que eu devolvia de imediato. Dava-me um prazer que ninguém podia imaginar. Sentia-me importante. Quem dava em doido era o revisor que quase sempre dava uma reprimenda à minha mãe que com um ar de desdém respondia: "É ainda criança, sabe?", mas depois lá me advertia para não deixar o revisor sem o desejo de dever cumprido.
            Quando chegávamos, era costume caminharmos até à Gala. Eu preferia ir de Inverno, quando a praia era só nossa. Durante o caminho, o meu lado insaciável de jovem aprendiz da vida e do mundo sobressaía. Disparava contra a minha mãe com uma mão cheia de "porquês". Para mim havia um porquê para tudo e eu queria saber todos os porquês. Confesso que devia ser um pouco irritante, pois às vezes a resposta era tão banal como complexa. Apesar disso, os olhos da minha mãe brilhavam e tal como o revisor, também ela sentia essa sensação de dever cumprido.   
            Ao avistarmos a praia eu corria desalmado até à beira-mar. Sentava-me e recuperava  o fôlego, enquanto a minha mãe logo atrás de mim permanecia em pé, de braços cruzados, talvez ela reflectisse perdida em pensamentos.  O seu olhar era profundo, frio e sincero. Às vezes parecia que ia chorar, mas nunca o fazia. Eu gostava de bater palmas cada vez que uma onda rebentava e gritava muito alto. Era como se respondesse ao ruído do rebentar das ondas. Eu e o mar gritávamos durante infindáveis minutos.
Gostava também de correr em direcção ao mar e quando vinha uma onda corria para a minha mãe e agarrava-me à sua perna. Ela delicadamente colocava as suas mãos nos meus ombros e dizia num tom suave: "Não tenhas medo, é só o mar. Ele é maior que tu, mas sem ti, meu pequenino, ele não era tão grande assim." Eu não lhe largava a perna, tinha medo.
            Um dia às cavalitas da minha mãe levantei o meu dedo indicador e meio sobressaltado e agitado disse: "Mãe, mãe! Olha, estou a tocar no céu! Faz tu, faz tu! É fácil!" e ela respondeu-me docemente: "Quem diria que era tão fácil tocar no céu".
            E era assim em todos os domingos, eu tocava no céu. Bastava-me acreditar tal como aqueles que acreditam, eles alcançam sempre o seu céu. O meu era azul.

            Gonçalo Coimbra      
            Nº14

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